sábado, 19 de maio de 2012

Quem tem medo de Glauber Rocha?




Perdão, leitores, mas esse texto poderá estar como a maioria das pessoas imagina um filme de Glauber Rocha: longo, incompreensível e por demais chato. Mas não desistam, pois esse que é o maior nome do cinema brasileiro merece sua atenção.

Por que Glauber Rocha causa ojeriza ainda hoje? Por que a juventude e seu gosto pelo cinema de hoje fogem dele sem mesmo o conhecer? Por que combatê-lo, defenestrá-lo sem olhar atentamente à sua obra e buscar nela algo de útil e substancial para o cinema e para o Brasil?

Ofereço a vocês, caros, a chance de conhecer um pouco mais de Glauber Rocha e, assim, poder surrá-lo à exaustão. E não se importem se o texto está enaltecendo Glauber: órfãos de Glauber sempre vão existir, assim como saudosos da ditadura e eleitores do Maluf. Afinal, a democracia é feita da pluralidades de opiniões e pensamentos.

Genialidade e loucura, eis Glauber Rocha

Para Glauber, cinema era política. Sua obra pode ser dividida em três fases: num primeiro momento, a fase revolucionária, que abarcaria o início da carreira, quando filma o curta O Pátio ainda no Colégio Central de Salvador, até a conclusão de Terra em Transe, que seria a reavaliação de Glauber para as esquerdas no Brasil e sua relação com o Golpe Militar de 1964; uma segunda fase que se pode chamar de estrangeira, começando com o curta de estética marginal Câncer, passando por seu maior êxito comercial, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e desembocando nas produções estrangeiras realizadas no exílio no decorrer dos anos 70 – Cabeças Cortadas, O Leão de Sete Cabeças, História do Brasil e Claro; finalmente, a volta do exílio, a fase final de sua trajetória, mais voltada ao experimentalismo. Fazem parte desta o curta Di-Glauber, o média-metragem Jorjamado no Cinema e seu filme derradeiro, o mais radical de todos, A Idade da Terra.

Da crítica cinematográfica, iniciada em Salvador no final dos anos 50, passaria às filmagens em 1960, já enturmado com a turma do cinema, quando prepara a produção de Barravento, a ser dirigida pelo amigo Luiz Paulino dos Santos. Mas logo nos primeiros dias de filmagens o gênio forte de Glauber viria à tona e um desentendimento entre eles leva Glauber a destituir o amigo do cargo e, assim, assumir a direção deste que viria a ser seu primeiro longa-metragem, só exibido no Rio de Janeiro em 1964. Barravento já dava mostras do que viria a ser seu cinema, uma obra voltada ao oprimido e que pregava abertamente a revolução. O filme narra a história de um grupo de pescadores em Buraquinho, na Bahia, que é explorado pelo dono da rede de pesca, mas, mesmo assim, mantém-se passivos diante do fato. O conflito nascerá quando Firmino, recém-chegado da cidade e vendo a situação condenatória e alienante de sua gente, tenta, a todo custo, libertar a população de sua condição passional e incitar uma revolta. Ao final, percebemos que o povo não estava preparado para a revolução, mas havia traços de que poderia vir a estar.

Em 1963, já no Rio de Janeiro, publica seu primeiro livro, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, onde, como o próprio nome diz, faz uma abordagem crítica da história do cinema brasileiro, criticando filmes que foram grande sucesso, como O Cangaceiro, as chanchadas e o esquema de produção industrial da Vera Cruz. Ao mesmo tempo, evoca os ideais que regeriam o Cinema Novo, fazendo um histórico do movimento que revolucionaria o cenário cinematográfico nacional. Ainda, em Revisão Crítica, Glauber elege dois cineastas como modelo de verdadeiros autores do cinema: resgata Humberto Mauro, o grande nome do cinema brasileiro desde os fins dos anos 20, e aponta o cinema social recente de Nelson Pereira dos Santos como uma tendência a ser seguida. Elogia abertamente Rio 40 Graus e o coloca como a faísca para o surgimento dos cinemanovistas.



Com esse pensamento que Glauber filma Deus e o Diabo na Terra do Sol, considerada sua obra máxima ao lado de Terra em Transe. Na verdade, ambos os filmes formam uma única obra em seu todo – caminham da esperança revolucionária demonstrada ao final de Deus e o Diabo ao desencanto niilista com o que foi da revolução após o golpe militar em Terra em Transe (sobre isso, ver minha coluna anterior publicada neste mesmo Digestivo).

Deus e o Diabo trazia à tona a revolução, preparava o povo para a tomada de poder (o filme fora lançado dias antes do Golpe de 31 de março de 1964). Como vários outros exemplares do Cinema Novo, buscava tirar o povo de sua condição submissa e colocá-lo à frente da revolução. Frente à opressão e exploração, apenas uma reação violenta se espera daquele que sofre a ação injusta. O mesmo que fez Manuel vaqueiro ao ser passado para trás pelo fazendeiro. O mesmo que fez Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros, ao acabar com o transe alienante – o cangaço e o misticismo – em que Manuel e Rosa se meteram em sua trajetória rumo à conscientização. Depois de tudo isso, o povo poderia correr livre em direção ao mar, quando o mar viraria sertão e o sertão viraria mar.

Quando se deu o Golpe Militar no Brasil, Glauber estava em Cannes para a exibição do filme no festival. Receoso em voltar, passa uma temporada na Europa, quando apresenta seu mais famoso texto, o manifesto Estética da Fome. O colonialismo dependente latino estaria gerando a fome, e esta moveria o Cinema Novo. Escreve Glauber: “nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”. Seria essa fome que levaria a legitimar uma reação violenta: “... a mais nobre manifestação da fome é a violência. (...) somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo...”. Essa violência estaria no que seria retratado – a verdade da miséria –, mas também no formato, no como seria filmada determinada história.

No final de 1965, Glauber volta ao Brasil e é preso, juntamente com outros seis intelectuais, quando protestavam contra a ditadura durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ele fica detido por 23 dias. No começo de 1966, vai ao Norte do país e filma Maranhão 66, um curta documental sobre a posse do governador José Sarney em que o diretor faz uma montagem paralela entre as cenas da posse e a miséria do povo. Cenas desse documentário seriam usadas em Terra em Transe, que começaria a filmar no segundo semestre do mesmo ano.

Terra em Transe nasceu do questionamento a respeito da passividade da classe média e do povo diante do Golpe Militar e se transformaria no balanço da sua própria geração. Paulo Martins é o poeta e militante que trafega pelos dois lados da política. Ora o vemos ao lado do populista Vieira ora ao lado de Porfírio Diaz, o homem de direita com tendência ditatorial. O filme é narrado em flashback, pois logo no início temos a perseguição da polícia a Paulo Martins, quando este é ferido e agoniza relembrando sua história. O filme se passa em um país fictício – Eldorado –, mas facilmente identificado como o Brasil. Mesmo os personagens têm semelhanças não coincidentes com personagens reais da vida política do período do Golpe.

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, filmado em 1968 e lançado no ano seguinte, seria o primeiro filme em cores e a obra de maior sucesso comercial de sua carreira, além de lhe render a Palma de Ouro de melhor diretor em Cannes. O filme recupera o personagem Antônio das Mortes, criado por Glauber em Deus e o Diabo, numa saga de perseguição ao cangaceiro Coirana que, no fundo, não era nenhuma ameaça. O problema estaria no coronel, que mantém as terras e a miséria na região. No decorrer do filme, Antônio das Mortes adquire essa consciência e passa a lutar contra esse dragão da maldade.

Os anos que vão de 1968 a 1970 são, sem dúvida, os de maior produtividade do cineasta. Enquanto se preparava para filmar O Dragão da Maldade, problemas burocráticos imobilizaram toda a equipe e, nesse intervalo, Glauber realizou Câncer, sua experiência no campo da estética do Cinema Marginal. Mal termina aquele e viaja para a África, onde realizaria O Leão de Sete Cabeças, com produção francesa. Se seu cinema estava de alguma forma ligado ao Brasil e sua situação política, a partir de O Leão de Sete Cabeças sua preocupação com a situação do povo, do oprimido, do colonizado, se amplia, chegando à África, à América Latina e se estendendo a todo o mundo subdesenvolvido, o chamado Terceiro Mundo.

Desse seu novo horizonte nasce, em 1970, Cabeças Cortadas, produção espanhola filmada na Catalunha. Retrata o tirano Diaz II em seu final de vida, quando relembra suas crueldades e a situação do povo. O cinema de poesia está aqui em altas doses, não havendo uma história linear a ser seguida nem as formas clássicas de fundir som e imagem. Glauber expõe as ruínas das ditaduras, tanto latinas quanto ibéricas (lembremos que uma ditadura comandava o Brasil, e Portugal e Espanha viviam sob os regimes autoritários de Salazar e Franco), e subverte a relação do som com a imagem, assim como a montagem, para chegar à idéia de delírio e decadência que levaria à revolução. O teor revolucionário deixa de ser alegórico para ser explícito, com frases de impacto, tais como “não há fortuna sem sangue” e “não temas, se matar o rei, herdarás a coroa e serás rei”.




Em 1971, Glauber deixa o Brasil. Esse exílio “voluntário” marcaria-o por suas andanças por Europa, Cuba e Estados Unidos, países onde tentaria agilizar fundos para outros filmes. Na Itália, em 1975, Glauber voltaria a filmar – surge Claro. Após uma fracassada tentativa nos Estados Unidos de conseguir recursos para a produção de A Idade da Terra, cujo roteiro fora escrito em seus anos de exílio, e/ou de uma adaptação de The Wild Palms, de William Faulkner, Glauber retorna ao Brasil em junho de 1976. Sua volta seria conturbada, principalmente na relação com o ambiente cultural nacional, quase todo ele formado por indivíduos de esquerda, devido a uma carta escrita por Glauber e publicada por Zuenir Ventura em 1974 na revista Visão em que o diretor elogiava os militares e acreditava que Geisel levaria a uma democratização do país. As expressões “Golbery gênio da raça” e “militares legítimos representantes do povo” ecoaram como heresia e loucura.

Como escreveu o jornalista Geraldo Mayrink em “Citizen Glauber”, texto publicado na Playboy em 1981 e revisto para a coletânea Obrigado pela Lembrança (Unimarco Editora, 2001), “quando foi embora, era quase um santo da revolução, uma espécie de mártir. Quando voltou, era um apóstata que renegava suas origens revolucionariamente santas”. Tal postura, as declarações bombásticas contra antigos amigos e companheiros e o fato de escrever artigos para jornais governistas, como o Correio Braziliense, aumentaram ainda mais seu isolamento do cenário cultural e sua fama de que voltara louco do exílio. Sua situação só piorou com a morte da irmã Anecy, em março de 1977, que caíra num poço de elevador. O choque foi tamanho em Glauber que este, no romance Riverão Suassuna, escreve sobre investigações que fizera e de suspeitas que tinha de que a irmã fora assassinada pelo marido, o colega de cinema Walter Lima Júnior, assistente de Glauber em Deus e o Diabo. Mais: dizia que o próximo a ser morto seria ele.

Nesse ambiente de desgosto o cineasta ainda filmou o enterro do amigo artista Di Cavalcanti. Di Cavalcanti, ou Di-Glauber recebeu prêmio especial em Cannes e até hoje permanece inédito e censurado por ação da família Cavalcanti, que conseguiu na Justiça impedir sua exibição. A crítica é unânime em afirmar que este é seu último grande trabalho e que, de certa forma, resumiria todo o pensamento de Glauber a respeito do cinema.

Também em 1977 ele entrevista Jorge Amado diante das câmeras e monta Jorjamado no Cinema, média-metragem produzido pela Embrafilme idealizado para a divulgação televisiva. No início de 1978, depois de uma briga desgastante e polêmica com a Embrafilme, personificada na figura de seu presidente, o também cineasta Roberto Farias, Glauber começa as filmagens de A Idade da Terra, lançado apenas em 1980 e considerado seu pior filme. No Festival de Veneza, onde fora exibido, gerou enormes polêmicas e críticas negativas, o que resultou numa briga homérica de Glauber contra o diretor francês Louis Malle, a quem acusou de “fascista” e de cineasta de “segunda categoria” num barraco armado por ele num hotel da cidade.

A volta ao Brasil reacendeu em Glauber a chama do experimentalismo. A Idade da Terra é uma história que se passa em três cidades – Salvador, Rio de Janeiro e Brasília – em que não há uma narrativa compreensiva ou linear, apenas a anarquia barroca e histérica de imagens, sons e discursos, estes proferidos contra o Golpe Militar numa entrevista inserida dentro do filme. Além desse exercício metalingüístico, temos a cena em que ouvimos Glauber aos berros por detrás das câmeras gritar a Danuza Leão: “Danuza, mais alto, fala mais alto!!!”. Sobre o filme, Glauber afirmou: “É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. (...) É um filme que fala das tentativas do Terceiro Mundo, do mundo em que vivemos. Não dá para ser contado, só dá para ser visto” .

Após os conflitos em razão de A Idade da Terra, e por ter torrado uma grana alta da Embrafilme, acaba por ir a Paris e pretende mudar-se para Portugal. Era 1981 e em agosto acaba por ter problemas sérios de saúde. É internado e trazido para o Brasil em 21 de agosto, falecendo no dia seguinte aos 42 anos, conforme profetizara durante a vida toda a amigos. Seu enterro foi filmado por Silvio Tendler e, ironia das ironias, impedida de ser veiculada qualquer imagem por Lúcia Rocha, mãe do cineasta. Só recentemente que tais imagens foram liberadas e estão contidas no documentário Glauber, O Filme – Labirinto do Brasil, do próprio Silvio Tendler.

Morreu o cidadão Glauber Pedro de Andrade Rocha, sobreviveu o mito Glauber Rocha. Até hoje, algo a ser decifrado e reavaliado. Ou ignorado, combatido, depende de cada um de nós.


Fonte: por Lucas Rodrigues Pires em www.digestivocultural.com