sexta-feira, 8 de junho de 2012

O cinema como instrumento de crítica social e política

Nos anos 60 houve uma efervescência política e cultural no mundo. No Brasil, Jânio Quadros estabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética e assumiu uma postura de simpatia à Revolução Cubana. Com sua renúncia e a posse de João Goulart foi lançado um plano de reformas de base (agrária, urbana e tributária) que incentivou a organização de estudantes, trabalhadores e das Ligas Camponesas.

                                          Cena do filme O Pagador de Promessas, de 1962
                                         
O cinema brasileiro refletiu isso adotando uma postura de engajamento político e uma estética inovadora que, por seu caráter transformador, acompanhava o desejo da revolução política. Influenciados pelo neo-realismo e pela nouvelle vague, os cineastas brasileiros optaram por produzir filmes de baixo orçamento, com a utilização de câmeras leves e sem o apoio de tripés, seguindo o postulado da “câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Como um cinema-denúncia, os filmes discutiam a situação política, social e econômica do país, sempre com uma visão crítica de esquerda, voltada para a busca de uma identidade nacional. Não era difícil, portanto, encontrar nas instituições políticas o interesse de utilizar o cinema como ferramenta revolucionária.

Foi assim que os Centros Populares de Cultura da UNE financiaram os filmes Cinco Vezes Favela – dirigido por Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman – e Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho. Interrompido pela censura durante a ditadura, o filme de Coutinho discute a história das Ligas Camponesas combinando características do ”cinema direto” (entrevistas, dados verídicos e documentais, além da presença ativa do diretor nas cenas) com a ficção, inserindo atores no papel de personagens reais. O filme foi lançado apenas em 1984, recebeu doze prêmios e introduziu o diretor na produção documental brasileira. Coutinho é considerado um dos principais cineastas em atividade hoje.

Entre os anos de 1962 e 64 os filmes enfatizaram o nacionalismo, em busca de uma identidade nacional em contraposição ao imperialismo norte-americano. Por isso, os olhares dos diretores se voltaram para o sertão. Seguindo esta temática, ocorreu um surto baiano, que lançou Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, e O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, primeiro filme brasileiro a receber uma Palma de Ouro, em 1962. Também são marcos Vidas Secas, adaptação de Nelson Pereira do Santos para a obra homônima de Graciliano Ramos, Os Fuzis, de Ruy Guerra, vencedor do Urso de Prata de 1965, e Barravento, estréia de Glauber Rocha. No entanto, foi com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), que Glauber ganhou reconhecimento e prestígio internacional.

O golpe militar contra João Goulart deu início à ditadura no Brasil, em 1964, regida por atos institucionais e emendas que suspendiam direitos políticos, sociais e civis. Com o nacionalismo em baixa, as cidades pareciam concentrar as contradições mais evidentes e a possibilidade de uma revolução. Começou uma nova fase dos cinemanovistas, que abandonaram a temática do sertão para voltar os olhos para os grandes centros urbanos, originando filmes como A Grande Cidade, de Carlos Diegues, e São Paulo S/A, de Luiz Person. Desta mesma época são Menino de Engenho, de Walter Lima Jr., A Falecida, de Leon Hirszman, Integração Racial, de Paulo César Saraceni e Opinião Pública, de Arnaldo Jabor.

Durante a década de 60 foram desenvolvidas diversas iniciativas de regulamentação das atividades do cinema, algumas governamentais e outras de profissionais diretamente relacionados ao campo artístico. Em 1965, foi criada a Difilm, uma sociedade de cinco empresas, das quais os principais diretores do Cinema Novo eram proprietários em uma “iniciativa de unir produtores de filmes de longa-metragem em torno de uma empresa distribuidora e co-produtora cinematográfica comercial”. Foi responsável pelo lançamento de filmes de Walter Lima Júnior, Glauber Rocha, Paulo César Saraceni, Carlos Diegues entre outros, somando um total de cerca de 30 títulos. No entanto, conseguiu seus maiores êxitos de bilheteria com Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa e Macunaíma, o que gerou conflitos internos que levaram a sua extinção em meados de 1974.

Em 1966, um projeto iniciado no segundo governo de Getúlio Vargas e discutido nos congressos de cinema de 1952 foi reelaborado para finalmente se concretizar com a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC), órgão que incorporou o Instituto Nacional de Cinema Educativo e cujos objetivos eram fiscalizar e normatizar assuntos referentes ao cinema nacional. Já em 1969 foi criada a Embrafilme, agência de capital misto controlada majoritariamente pela União, para exercer atividades complementares ao INC. Em 1975, suas funções foram ampliadas – controlava agora os setores comercial, industrial e cultural – a tal ponto que o INC foi extinto. Neste período, a quota de exibição de filmes brasileiros aumentou “criando um mercado de 63 dias/anos em 1969 que evoluiu até 112 dias/ano em 1975 (30,6% do tempo total). Além disso, estimulou a multiplicação de salas exibidoras, que saltaram de 829, em 1967, para 3.276, em 1975”.

No mesmo ano da inauguração da Difilm, Glauber Rocha publicou “Uma Estética da Fome”, manifesto que inaugurou uma nova ética e estilo de representar a pobreza e a violência. Em 2000, após o lançamento do filme Cidade de Deus, a pesquisadora Ivana Bentes criou o termo “Cosmética da fome” para denominar a estética de filmes contemporâneos como o de Fernando Meirelles. Ismail Xavier afirma que a “estética da fome” transformava a técnica em linguagem de cinema, pois “a carência [de recursos] deixa de ser um obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão”.

Uma maneira de compreender o contexto político e cultural é observando as formas assumidas pela censura com o passar do tempo. Após o golpe ditatorial a censura teve um papel de defesa da moral católica, ocupava-se em cortar palavrões e cenas de insinuação de sexo. Deus e o Diabo Na Terra do Sol, por exemplo, faz parte deste período em que a restrição era feita por faixas etárias. Foi proibido para menores de 18 anos pelos diálogos e cenas violentas. Uma das fichas de censura, datada de junho de 1964, indica que “a película mostra em demasia a pobreza brasileira, onde não há razão, de deixarem rodar em outros gabinetes estrangeiros, para não ridicularizar o nosso paíz”. Já no parecer de José Vieira Madeira ao chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), afirma-se que “como realização artística e intelectual, o filme é perfeito. Como trabalho técnico, entretanto, temos assinaladas algumas falhas (...)”. Interessante notar que o censor tem consiência da postura crítica de Glauber e escreve que houve um desrespeito às autoridades em trechos de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, livro de autoria do cineasta, no qual os censores são chamados de ‘polícias ignorantes’.

A edição do AI-5, em 1968, acabou com as garantias constitucionais e fortaleceu ainda mais o órgão censor, no qual os cargos foram assumidos por militares. Segundo Leonor Souza Pinto, “com o acirramento na sociedade civil de resistência ao golpe, o perfil da censura muda. Surge nos processos menção a questões de ordem política. Termos como ‘subversão’, ‘ditadura’, ‘governo popular’, ‘revolução’ se tornam comuns”. Terra em Transe (1967), outro marco na filmografia de Glauber Rocha, explorou planos-seqüência, diálogos longos e alegorias discutindo um país chamado Eldorado, governado por um déspota, em clara alusão a condição ditatorial a qual estava submetido o Brasil. O filme foi censurado conforme o parecer de Romero Lago, então chefe do SCDP, pelo “modo irreverente com que é retratada a relação da Igreja com o Estado”, por conter “uma mensagem ideológica contrária aos padrões de valores culturais ou coletivamente aceitos no País”, por “ser a tônica do filme a prática da violência como forma de solução de problemas sociais” e pela “seqüência de libertinagem e práticas lésbicas inseridas” nele.

Com o decreto do AI-5, a censura passou a fazer perseguições políticas e os filmes se tornaram cada vez mais complexos, em uma tentativa de transmitir mensagens ideológicas por meio de simbologia. A utilização de metáforas e alegorias herméticas gerou um progressivo afastamento do público dos cinemas e o desinteresse dos exibidores. São desta época Cabeças Cortadas, de Glauber Rocha, Quando o Carnaval Chegar, de Carlos Diegues e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. A linguagem de vanguarda e as inovações estéticas propostas no Cinema Novo não alteraram a produção ou a circulação dos filmes. Neste sentido, os diretores – jovens de classe média, escolarizados, que pensavam o cinema como forma de militância, reflexão, crítica e conscientização política – se afastaram do grande público.


Fonte: cinecaleidoscopio.com.br